sábado, 7 de novembro de 2009

Politrauma

Parecia que precisaria de uma vida inteira para se recuperar da queda, o fundo do poço era logo ali à sua frente, mas ela resistia a alcançá-lo. Tinha ciência de sua condição, sabia que aquilo que a afligia era sua máxima culpa, mas ela era incapaz de criar seu mundo, de girar em torno dele e ser dona do seu umbigo - que maldição. O vira quando pensava em como daria o próximo passo, e aquele sorriso era mais que um consolo pra tudo que vinha acontecendo, era um convite à sua redenção. Poliana abraçou Miguel com todo o afeto que sentia por ele e respondeu um não convicto quando ele perguntou se ela estava bem - afinal há tempos não se viam. Ela tinha emagrecido e ganhara uma leve dor de estômago de origem psicossomática, não dormia bem, não se ocupava mais das coisas que lhe davam prazer e tentara por tudo não se desesperar e transformar tudo aquilo numa tempestade em copo d'água. Reconfortava-se nas palavras do amigo e ria e chorava enquanto ele as dizia acariciando seu cabelo, por que tudo que ele dizia ela já sabia por si mesma, mas adiava a conjetura como quem espera que uma outra pessoa faça as honras de colocá-la nos eixos. Digo por experiência própria: fique um tempo sozinha, acostume-se com a sua pele e tire o lixo da sua casa antes de convidar e receber visitas. Tudo passa, bom ou ruim, permanecerão só as lembranças. Esqueceste que superaste coisa pior? Hoje eu tenho na pele só as cicatrizes e na memória só os segundos de tudo que vivi, e vivi plenamente até os maus momentos e a dor que eu senti, por que são nessas lembranças dolorosas que encontro forças pra nunca mais cometer o mesmo erro duas vezes.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Vivem nos dizendo que tudo nessa vida passa. Ou não. O passo que dei até aqui passou; e esse, e esse, e mais esse. Passa a minha fome, a minha sede. Passa minha angustia, minha solidão; a minha vontade de te abraçar (passa?) - eu creio que não. Vejo os letreiros dos auto-postos e o preço do combustível só sobe. Sobe, passa. Sempre passando. Observo os outdoors no caminho pra casa e eles passam, inevitavelmente passam. Passa a minha angústia, a minha solidão. O velocímetro sobe, passa - eu queria vê-lo apontar 200km/h pra depois apertar o freio ao ver chegar um abismo, só pra sentir aquele frio que começa na barriga e desce até as pernas até que elas fiquem bambas, e a respiração arfante como naqueles abraços que não passam da minha cabeça. Aqueles que se passaram no momento em que disseste que era brincadeira a nossa brincadeira de dizer verdades. Passa a minha fome, a minha sede, a minha saudade, angústia e solidão. Passa você. Mas eu não vejo.

sábado, 24 de outubro de 2009

Do dia

-
Tem coisa ruim acontecendo por aí. Pior: tem coisa pior acontecendo por aí. Andar pelo mundo e desconcentra-se do teu umbigo por instante, prestanto atenção em cores que não sabes o nome. Cores de Matisse, de Portinari, cores. Passear pelo escuro e prestar atenção naquele que senta ao teu lado no ônibus, ver-se na pele dele, sentir o calo e tornar-se ele, só aquele instante. Sinalizar cada canto de passarinhos, cada semáforo, cada pedinte transeunte. Andar pelo mundo fazendo algum bem, nem que seja pra si mesmo, satisfação de ver um sorriso, de ouvir um obrigado tímido, ou de não ouví-lo mas sentí-lo. E ver a fome nos meninos que [realmente] têm fome. Pela tela, pela janela, através do vidro do seu carro hightech (;

sábado, 11 de abril de 2009

Sinfonia do silêncio

A lua cheia esgueirou-se sobre minha janela
e, como fosse afagar-me os cabelos,
adentrou o quarto, luz rutilante,
e velou meu sono cansado.

Fiquei a encarar-lhe miserável
invejosa de sua magnífica plenitude,
mas agradecida por sua divina humildade,
solícita, debruçada em minha janela.

Eu valsei sozinha aquela noite
descartada dos pares que se formavam no salão,
e reconfortei-me no aconchego silencioso do céu,
regido pela Lua, numa sinfonia de notas caladas
feitas sob a medida tênue dos solitários.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Contra a parede me puseste
punido com beijos os meus lábios
a mesquinhez de ter privado
os teus
dos meus afagos.

domingo, 28 de setembro de 2008

Oblíqua

Nunca lembro de esquecer que aquela noite fora
a mais libidinosa
dentre tantas
que já me permiti viver, que
alimenta minha fantasias
frutos de um desejo obliterado
trancado
nas horas daquela noite

Fora tu
o mais carinhoso dos amantes
dentre tantos
que já me permiti ter, queria
possuir-te para me fazer possuída
ou, possessiva, possuir-te de arremate
prender-te entre meus beijos
para viver o gozo de amar-te

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Célere

Minha vida não está completa
não sou forte, nem sou grande
sou uma asa do vento insistente
que sonha retornar ao regaço
de meu amor maior.

Sou poeta
Ambiciono o pôr-so-sol no horizonte da enseada tropical
onde eu posso, enfim, gozar os louros
de uma vida de busca
de resignação
de emplasto

Quero mais uma vida curta de idas e vindas
a uma longa vida de nostalgia do retorno não cumprido.
Bem mais desejo um amor que me alucine,
tormete e me faça ceifar dos neurônios a vida
a um prazer eterno de já ter sido Amante
ainda que não tenha a sorte de ser Amada

Mas a sorte
ela tem vento nos pés
passa pé-ante-pé, cochicha segredos em meu ouvido
enche-me de ilusões e foge
Foge!
e eu que adoro ser iludida...

Ilusão é própria dos amantes
é o maior baluarte do Amor que possuímos
e que distribuímos,
a ilusão e o amor.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Ode a um canalha

Chegou como quem quer tudo
tomou-me de arremate
ficamos, então, em empate
e fechei-me em seu mundo

Eu me apaixonei por uma idéia
pois és mais que rara jóia
és um conquistador barato
um canalha engravatado

Tiveste a mim e às outras
escolheste a que mais te apraz
e eu fiquei sozinha
uma boba e um sentimento fugaz

Deixaste-a, já não mais te aprazia
e a boba tornou-se a amada
de um príncipe alado
nunca tua, que somente fingia

domingo, 22 de junho de 2008

Conto

Pra mim? Mas... não precisava. Ficamos em silêncio enquanto eu abria o saquinho perfumado com uma lembrancinha de sua recente viagem à Paraíba. Eu meio surpreso, ela com cara de boba. Quando estiveste lá?

- No último fim de semana. Lembra que te prometi um presente de aniversário?

Lembro sim, respondi. Agradeci com um abraço duradouro, quase romântico. Aquele corpinho, hoje mais curvilíneo, era meu fruto proibido, minha mais doce e voluptuosa tentação. Ela é minha aluna, mas eu não resistia.

Vez ou outra, durante as aulas, nossos olhares uniam-se em resquícios de segundo em que sua timidez permitia levantar-lhes, eu sentia o magnetismo que aquela mulher provocava em minha pele, perdia o fôlego. Desejava possuí-la ao menos uma noite.


[continua]

terça-feira, 17 de junho de 2008

O meu presente

Quando eu nasci um anjo errante
desses que vagueiam pelo mundo disse:
Vai, mulher, vive essa vida.
É o teu presente!
o hoje, meu presente
ontem é só resto dum quociente de passado
amanhã... quem sabe?
Que tal um cineminha?
te pego no elevador e a gente sai pra comer na rua
a noite é uma criança
e a gente trabalha para o sucesso dessa transação.
Dar bom dia ao mar
e tomar café mirando o alvorescer
voltar pra casa e esquecer teu telefone.
Amanhã, quem sabe.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Película fotográfica

Imutável e incorrigível
a película fotográfica nunca mente.